Barbie, a boneca feminista e diabolica

Pesa sobre a boneca a acusação de corromper valores cristãos e de não ser mais delicada, feminina e virtuosa como antes
Enquanto o meteoro não vem, temos que continuar a conviver com muitos fundamentalistas religiosos que se colocam na condição de seres de moral e espiritualidade elevadas, e que só estão aqui esperando Jesus voltar para levá-los para o céu. O problema é que enquanto Jesus não volta para buscá-los, essa gente, que parece não ter nada de útil para fazer em suas vidas, fica a encher o saco da sociedade com a sua ignorância, querendo padronizar comportamentos sociais com a sua hipocrisia, naturalizando preconceitos e intolerância sob o nome de Deus e demonizando a tudo e a todos que não lhes parece o espelho. O narcisismo evangélico é uma realidade patológica em nosso meio e precisa ser combatido, em defesa da saúde mental daqueles que não são obrigados a viver os mesmos “valores” e “princípios” bíblicos desse “evangeliquistão” falso moralista.O diabo, digo, o alvo da vez, é a personagem Barbie, uma boneca de 64 anos de idade que, ao contrário de muitas e muitos de sua idade, está se desconstruindo de preconceitos e de alguns “valores” que historicamente contribuíram apenas para o sofrimento daqueles considerados fora do padrão de normalidade e de aceitação. Eu não assisti ao filme, mas se tem crente fundamentalista achando ruim, é porque o filme deve ser bom. Aliás, eu queria saber o que crentes fundamentalistas vão fazer no cinema, uma vez que a arte ali exibida foi criada a partir de uma inspiração que eles consideram mundana. Não são eles que costumam dizer que não são “do mundo”? Sendo assim, não deveriam ir ao cinema e limitarem-se apenas aos cultos em suas igrejas, onde estariam de acordo com tudo que estava sendo pregado. Até com os absurdos cinematográficos que constam no roteiro de muitas denominações evangélicas.A principal reclamação ao filme, é a de que os valores cristãos estão sendo atacados e o diabo, como sempre, está por trás do argumento do texto. Se alguém me dissesse que o diabo escreveu a biografia de Edir Macedo que virou filme, eu até acreditaria. O sucesso de bilheteria da produção não me deixa mentir. Quando me sugeriram o vídeo de uma influenciadora digital gospel chamada Priscilla Mazo, eu já imaginava que seria movido por dois sentimentos depois de assisti-lo. Raiva e riso. Não necessariamente nessa ordem. Primeiro, ela inicia o vídeo mostrando o seu “vestido rosa lindo” que teria sido usado na ocasião e que remete à infância de toda menina fã da boneca. “Olha aqui a minha roupa! Linda, né? ”, diz a Barbie versão Damares Alves, exibindo o figurino para os seus seguidores e se mostrando decepcionada por ter ido toda de rosa ao cinema e ter se deparado com um filme diabólico e anti-bíblico, que contraria tudo o que ela costuma pregar no seu Instagram, que é “a mulher delicada, virtuosa e feminina”, que faz o homem crente gemer sem sentir dor. O acréscimo é meu, com a licença da grande cantora e compositora Amelinha.A influenciadora ressalta que a cada cena onde o feminismo diabolico da musa cor de rosa era evidenciado ou quando os valores cristãos eram corrompidos, ela alertava à sua filha, que estava no cinema com ela, de que aquilo não estava na Bíblia e que “mulher virtuosa não faz isso” Talvez, uma mulher com tamanha virtuosidade como a referida influenciadora, devesse estar lendo a Bíblia para a sua filha antes de ela ir dormir. Só não recomendo textos do antigo testamento, porque a menina poderia ter pesadelos onde a Barbie a salvaria da praga lançada sobre as crianças no Egito. Priscilla Mazo também criticou a falta de beijos entre Barbie e Ken, associando a ausência de troca de saliva entre os personagens à uma ideologia que quer destruir o romantismo dos relacionamentos entre “príncipes e princesas” que, segundo ela, faz parte da nossa vida real. Ela também enxergou uma crítica do filme à sua própria existência, ao tentar mostrar que “pink womans” como ela são fúteis e desnecessárias à sociedade. Apontando para si e se dizendo “rosa” e mostrando a bela piscina da casa de boneca onde mora, ela se indigna e desabafa dizendo que o filme quer acabar com tudo aquilo que ela vive, e ‘’revela” que até a piscina da Barbie no filme é artificial e não tem água.A realidade acéfala e distópica que norteia o pensamento de pessoas como a Barbie Priscilla, e desnorteia a existência de muitas outras por terem que dialogar, ainda que contra a sua vontade, com tais pensamentos, mostra o quanto o evangelho de Cristo ficou em segundo plano e deu lugar a prepotência e a arrogância de pessoas que se colocam acima do mestre que dizem seguir. Gostaria de saber se essas pessoas mostram para os seus filhos a realidade de milhares de outras crianças, que nunca tiveram uma boneca ou um brinquedo qualquer, e que vivem na miséria graças ao sistema econômico injusto e desigual que eles adoram e que é, na verdade, o seu deus. O capital. Algo que Jesus nunca teve e sempre condenou o injusto usufruto de poucos, em detrimento da carência de muitos. E isso me dá a exata noção de como esses evangélicos fundamentalmente fúteis e inúteis ao real propósito do evangelho de Jesus, são nocivos à sociedade e às transformações sociais as quais ela precisa ser submetida. Por outro lado, eu penso no porquê eles ainda querem viver num mundo onde até uma personagem infantil os aborrece. Não seria melhor pedirem para que Deus os levassem logo, já que estão certos que se encontrarão com ele? O mais engraçado é que quando estão próximos do tão esperado encontro, fazem de tudo para não irem. Oram, rezam, tomam remédios, recorrem aos melhores hospitais, imploram por um milagre. Tudo para adiarem a viagem com Jesus. Deus tá vendo que você não quer ir morar com ele nada.Voltando a boneca influenciadora, eu poderia dizer que mulheres da sua idade que se vestem como a Barbie, sem estarem num baile à fantasia, precisam de terapia. Mas os meus advogados me orientaram a ficar quieto e deixar que os psicólogos se manifestem. Outros evangélicos, incluindo pastores, também estão se manifestando e alertando aos pais para que não levem as crianças para assistirem o filme, pois se trata de uma cilada do inimigo para perverter a inocência dos pequeninos. O curioso é que muitos desses evangélicos ajudaram a eleger um boneco Ken miliciano como presidente da república, e tinham a sua esposa Barbie laranja como uma mulher virtuosa e ungida por Deus. Esses são os personagens que devem inspirar as crianças cristãs? Um boneco genocida e adorador da tortura, cuja a especialidade é matar, e uma boneca que lava dinheiro e tenta se apropriar de joias que não lhe pertencem? A diferença é que a Barbie, por não existir na vida real, não deveria representar nenhum perigo para os bons valores da família tradicional e cristã brasileira.Mais um boicote está sendo proposto pelos evangélicos, sob a alegação de que o filme da Barbie não é para cristãos. Críticos do comportamento alheio, eles também agora são críticos de cinema. Eu sugiro que a academia de cinema inclua na próxima edição do Oscar, a categoria “valores cristãos” e convidasse o André Valadão para entregar a estatueta ao vencedor. E o Oscar de melhores valores cristãos go to: “A morte do estado laico”. E o diretor do filme vencedor subiria ao palco da cerimônia, ergueria o prêmio para o céu e gritaria emocionado: “God hates pride. ” Enquanto isso não acontece, eu já me dou por satisfeito de não ter visto nenhum pastor orando para que Deus quebrasse a mandíbula da Barbie ou para que ele matasse a diretora do filme. Possivelmente, não escaparemos de ver uma versão comunista da Barbie vestida de vermelho, usando uma echarpe do MST e com a legenda: “partiu Foro de São Paulo”, circulando pelas redes sociais. É o de menos. Difícil mesmo vai ser esperar Jesus voltar e levar essa gente chata e hipócrita embora. Posso até estar enganado, mas depois que ele os deixar em um lugar seguro e eterno, ele volta para habitar no meio de nós.