Cinema de autor e a mágica Piazza Grande
img src="https://cdn.brasil247.com/pb-b247gcp/swp/jtjeq9/media/20230802060820_5ed8e101233d70234358e5a7185ec4ebbc0669e56914e65f927eb4b0a6561c62.jpg" width="610" height="380" hspace="5" /
Locarno foca no presente, em suas crises e na esperança possível. O Auge do Humano 3 representa a América Latina na competição
br clear="all"
Por Sergio Ferrari, de Locarno, Suíça - Apesar dos incêndios devastadores nos países mediterrâneos, em plenas férias de verão na Europa, durante alguns dias, a agenda midiática continental dá lugar ao mundo cultural, em particular aos festivais de cinema.Locarno, o principal festival de cinema suíço com projeção internacional, defende entre os dias 2 e 12 de agosto uma premissa desafiadora: contribuir com imagens para uma forma diferente de perceber o presente e o futuro.Essa tese é defendida por Giona Nazzaro, diretora artística do Festival de Cinema de Locarno, ao apresentar sua 76ª edição, prestes a ser inaugurada. Nazzaro considera os filmes que compõem a competição internacional como "uma visão possível do mundo". E sublinha que, embora "os acontecimentos recentes (em referência às crises de vários tipos e às guerras) não nos encorajem a ser otimistas, o cinema nos ajuda a imaginar –e a colocar em imagens– um outro mundo possível".São esperados mais de 130 mil espectadoresNazzaro explica que, embora haja plena consciência da complexidade do momento histórico no qual o Festival de Locarno está inscrito, "buscamos e sondamos um presente que, apesar de tudo, é rico e emocionante". E "nos esforçamos por captá-lo e contá-lo em diálogo com os filmes que selecionamos". Com o compromisso sempre vigente em Locarno de priorizar o cinema de autor, no qual a concepção de seu diretor ou diretora prevaleça sobre qualquer outro valor, em especial o da bilheteria e o do mero sucesso comercial.O festival é um conglomerado de vários programas em um que, no ano passado, garantiu quase 130 mil espectadores em 11 dias, e que espera repetir ou superar esses números em 2023.O segmento mais popular é o que acontece na Piazza Grande (Praça Grande), onde, a partir das 21h30, com a última luz do dia, milhares de espectadores assistem a um ou dois filmes sob as estrelas até a madrugada. A Piazza é a maior "sala de projeção" ao ar livre da Europa. Possui 8 mil cadeiras, muitas delas instaladas ao pôr do sol e retiradas após a função, em uma repetição diária que envolve centenas de jovens colaboradores.Este ano, a Praça Grande antecipa momentos importantes. Entre outros, a exibição de Anatomie d'une chute (Anatomia de uma queda), de Justine Triet, que acaba de ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França. Assim como a presença de um amigo histórico de Locarno, Kean Loach, que chega com The Old Oak (O Velho Carvalho), seu mais recente longa-metragem.Praticamente, cada projeção na Piazza começa com a cerimônia em que um prêmio especial é concedido. Na noite do encerramento, sábado, 12 de agosto, serão entregues os Pardos (Leopardos) de Ouro e Prata aos vencedores das diferentes categorias (https://www.locarnofestival.ch/festival/film-sections/piazza-grande.html). Entre elas, a competição Cineastas do Presente, que reúne primeiros ou segundos longas-metragens, principalmente estreias mundiais, dirigidos por talentos emergentes. Assim como o concurso Leopardos do Amanhã, que convoca produções experimentais inovadoras. E a Competição Internacional, reservada a cineastas experientes: a mais importante e a que concede os prêmios de maior valor monetário e prestígio.Apesar da grande diversidade geográfica dos 214 filmes que serão exibidos –entre os quais se destacam o cinema francês e o italiano--, tanto a Piazza Grande quanto a Competição Internacional em sua atual edição praticamente não incluem produções da América Latina (https://www.locarnofestival.ch/it/festival/program.html?type=inlocarno).A presença significativa latino-americana --cinema muito amado pelo público suíço-- é assegurada através de 36 filmes da Retrospectiva, dedicada nesta edição ao cinema popular mexicano do período entre 1940 e 1960 (https://www.locarnofestival.ch/it/press/press-releases/2023/Locarno76-Retrospective.html). Também na secção Open Doors (Portas Abertas), que prioriza regiões onde o cinema independente é particularmente desafiante com o objetivo, tal como definido pelos organizadores do festival, de construir pontes para a colaboração entre regiões, países e continentes, este ano, como no ano passado e no próximo, Portas Abertas concentra seu projetor na América Latina e no Caribe. Na atual edição projeta 18 produções, sendo 7 longas-metragens da Bolívia, do Peru, da Colômbia, do México, da Venezuela e do Brasil (https://www.locarnofestival.ch/pro/projects/open-doors.html).O filme Todos los incendios, do cineasta mexicano Mauricio Calderón Rico, é o único representante da América Latina na competição Cineastas do Presente, a segunda em importância. Pássaro memória, do brasileiro Leonardo Martinelli; Du bist so wunderbar, coprodução teuto-brasileira de Leandro Goddinho e Paulo Menezes, e Solo la luna comprenderá, da cineasta costarriquenha Kim Torres, são os três curtas-metragens latino-americanos que participarão da competição Leopardos do Amanhã.Um filme latino-americano na disputa pelo Leopardo de OuroEl Auge del Humano 3 é o único filme latino-americano dos 17 que concorrem ao principal prêmio do festival. Foi dirigido por Eduardo Williams, já conhecido em Locarno por ter obtido em 2016 o Leopardo de Ouro na categoria Cineastas do Presente, com seu filme anterior (https://rebelion.org/leopardo-de-oro-latinoamericano-en-cineastas-del-presente/).Em entrevista exclusiva, Williams explica que seu novo filme "é uma continuação descontínua do meu primeiro filme. Tal como o anterior, El Auge del Humano 3 também se passa em três países (Sri Lanka, Peru e Taiwan, nesse caso) e apresenta as mesmas questões do anterior, embora "tenham sido abordadas de outras formas".O catálogo do Festival escreve o cenário para o trabalho de Williams como "diferentes grupos de amigos vagando em um mundo escuro, chuvoso e ventoso. Eles passam um tempo juntos, tentando fugir de seus empregos deprimentes, constantemente vagando no mistério de novas possibilidades". Williams explica que se trata de "uma conexão de países e pessoas que, geralmente, não se relacionam. Nós os seguimos de uma maneira que poderia nos fazer sentir como humanos, máquinas e alienígenas. O filme levanta diferentes questões e muitas dúvidas. E que dúvidas são essas?" Williams responde: "Modesta dinamite".De certa forma, a diversidade de países onde foi filmado é a causa da multiplicidade de coprodutores, sob a tutela da sociedade Un Puma, da Argentina. A seleção de atores e atrizes locais, bem como os variados cenários, explicam o trabalho de vários anos que estão escondidas nas duas horas desse longa-metragem classificado como ficção.À pergunta sobre se El Auge del Humano 3 realmente pertence ao gênero de ficção, Williams responde: "Uma ficção não clássica..., com muito improviso; com atores não profissionais que têm a liberdade de inventar e se nutrir em sua vida real". E argumenta que, devido à reconceitualização dos gêneros cinematográficos no presente, seus filmes também são apresentados em festivais de documentários.Quando se trata de memórias fortes do processo de filmagem, é impossível ignorar a experiência profissional de Williams no Peru. "Estivemos em Iquitos, na entrada da floresta amazônica, e coletamos muitas imagens do bairro de Belén, que alaga durante a metade do ano. Eu queria filmar um lugar no mundo onde as pessoas vivem na água. Não é um desafio fácil a nível técnico. Foi um dos pontos altos da filmagem". A água, justamente, é um dos fios condutores de El Auge del Humano 3. Williams explica com um exemplo: "Passamos desse bairro semi-inundado de Iquitos até chegar a uma montanha em Taiwan, onde há um lago e se pode ver muitos tipos de águas de cores diferentes: preta, azul, marrom".Voltar a Locarno, mas agora com o único filme latino-americano na seção mais importante do festival, é algo muito especial para o diretor argentino. "Estou muito emocionado por ter terminado o filme e também por poder estreá-lo em Locarno. É a primeira vez que participo a esse nível num grande festival". No entanto, o fato de seu filme ser a única contribuição latino-americana na competição pelo Leopardo de Ouro, para Williams, é algo quase anedótico: "Só agora eu percebo; constato isso. Mas, eu teria preferido ver muito mais presença da América Latina. Eu amo o cinema do meu continente, quero que ele sempre lote as salas de cinemas de todo o mundo, e teria me deixado mais feliz não ser o único latino-americano na competição internacional de Locarno."Tradução: Rose Lima