Temos de tudo

Não sabemos quem é vítima e quem é vilão. Na dúvida, fugimos

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São Paulo tem de tudo. A cidade e o estado. Foi o que ouvi quando recebi a chave do apartamento alugado no bairro da Pompéia. Ouvi e continuo ouvindo, faz 35 anos.Têm mesmo. Poderia falar dos dois, juntos e misturados, porque quando o calo dói na praça da Sé, também aperta em Araçatuba, inflama no Guarujá, arde em Bauru.Fico por aqui pela capital, que conheço melhor.São Paulo tem um GP de fórmula 1.Quatro ou cinco estádios de futebol; uma frota imensa de helicópteros e outra muito maior de carros importados e blindados. Roda gigante com cabine vip a 420 reais, cinema com ingresso no sofá de casal por módicos 190 reais.Tem a Faria Lima, a Berrini, a Paulista. Dinheiro que não acaba mais.É. São Paulo tem de tudo. Dá orgulho mas também dá vergonha.Por que a cidade com o maior PIB do Brasil não tem uma Política decente para os moradores de rua? Como é possível uma febre de construção de prédios e tão pouco investimento em casas populares?A pandemia piorou o que estava péssimo? Concordo, só que a multidão de sem-teto é vexame do milênio passado. A última contagem indicou, só na cidade, mais de 30 mil pessoas jogadas em calçadas, largadas com fome, frio, muitas vezes doentes, quase sempre raquíticas.A impotência explode em nossa cara como uma bofetada. Aquela de mão cheia.O que sentem prefeitos e governadores quando andam pelas ruas? Ou não andam? Ou não sentem?No meio do abandono, dispara o tráfico, se agiganta a violência e o paulistano comum se perde. A gente confunde Cracolândia com acampamento de trabalhadores desempregados sem teto, dependentes químicos com ladrões, cidadãos abandonados com traficantes. Não sabemos quem é a vítima e quem é o vilão. Na dúvida, apertamos o passo.A insegurança intimida a solidariedade e o medo de estender a mão agrava a miséria.Então, nos meses pares e nos ímpares também, alguém bem penteado, maquiado e com roupa impecável vem prometer.“A cracolândia acaba esse ano. Os dependentes químicos serão curados. Traficante vai pra cadeia e os sem-teto para as casas populares que já estão quase prontas. Por tudo isso, peço seu voto”Uma ou outra administração consegue progressos, voluntários se entregam à causa, mas a velocidade do abandono é muito maior.O que você faria se aquele homem maltrapilho, de cabelos brancos e sem uma perna fosse seu pai?E se aquele rapaz sujo, com o rosto machucado, que implora por comida, fosse seu filho?E se aquela jovem, mãe de duas crianças, que dorme de favor numa barraca, fosse sua irmã, ou sua amiga?Ou se num desses terremotos da vida, você fosse parar na rua? Se conformaria em viver de esmolas, ia procurar trabalho mesmo sem roupas ou documentos, se refugiaria nas drogas? Desistiria de tudo?30 mil pessoas sem um banho, um colchão. Sem direito a se alimentar, a ir ao banheiro.São Paulo tem de tudo mesmo.Como é possível o Brasil encontrar petróleo no fundo do mar, inventar a mala de rodinhas, ter usina nuclear, promover Copa e Olimpíada e não cuidar dos seus filhos mais desprotegidos?Tantos doutores e doutoras, mestres, intelectuais e ninguém tem solução?São Paulo é espelho cristalino desses dois Brasis.Um no porão, outro na cobertura.Provocado por movimentos sociais, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, decidiu que o governo tem que apresentar um plano nacional de ajuda à população de rua em 120 dias. A ordem vale pro país todo.Boa decisão. Porém, pergunto a você, leitora ou leitor, por que 120 dias? Por que não uma semana? Um dia? Por que a vida do morador de rua vale menos que a nossa?