A CIA - e o Brasil - contra Allende

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Como o governo Nixon tentou impedir a posse da Unidade Popular, sabotou seu governo e apoiou o golpe; e a participação da ditadura brasileira

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Por Gabriela Máximo e Javier M. González - O jovem jornalista americano David Atlee Phillips era um agente da CIA em início de carreira em Santiago nos anos 50. O Chile ainda não representava um grande problema para a central de inteligência americana, mas Phillips já mostrava seu talento para a espionagem. Sob o pseudônimo Paul Langevin, passou a se infiltrar em organizações de esquerda. Foi assim que, em 1952, presenciou o discurso feito por um dirigente do Partido Socialista e ficou impressionado com a força de sua oratória. Fez um relatório a seus chefes em que recomendava atenção ao político de esquerda. Seu nome, Salvador Allende Gossens.Phillips se tornaria um dos mais importantes e lendários agentes da CIA, chegando a ser chefe da agência para todo o Hemisfério ocidental. Allende foi eleito presidente 18 anos mais tarde, na terceira tentativa, a primeira delas naquele mesmo 1952, quando obteve ínfimos 5% dos votos. O episódio relatado por Phillips anos mais tarde mostra que Allende estava no radar do serviço secreto americano desde os anos 50, como conta o jornalista chileno Carlos Basso em seu livro “La Conexión Chilena: Historias de espías”. Mas foi em 1970, ao vencer as eleições presidenciais à frente da coalizão de esquerda Unidade Popular (UP), com um projeto socialista de governo, que se tornou alvo de uma perseguição implacável do governo dos Estados Unidos até ser deposto pelo golpe civil-militar de 11 de setembro de 1973, que agora completa 50 anos.Tentativa frustrada de fomentar golpe antes da posse - Em setembro de 70, o governo do então presidente dos EUA, Richard Nixon, avaliava opções para tentar impedir a posse de Allende. A ideia de fomentar um golpe não tinha apoio unanime. O embaixador em Santiago, Edward Korry, deixou sua posição clara em um memorando: “Estou convencido de que não podemos provocar [um golpe] e não devemos correr o risco de uma nova Baía dos Porcos”, disse em referência à fracassada tentativa americana de fomentar um golpe em Cuba, em 1961. O chefe da CIA em Santiago, Henry Hecksher, tampouco apoiava ideia. Ambos foram vencidos pelo então conselheiro de segurança nacional Henry Kissinger. No dia 15 de setembro, Nixon, a conselho de Kissinger, determinou que a CIA promovesse um golpe de Estado no Chile.A Casa Branca corria contra o tempo para impedir que o Congresso chileno declarasse Allende presidente no dia 24 de outubro. Allende tinha sido eleito em 4 de setembro, mas como não obteve maioria absoluta, a decisão final recairia sobre o Legislativo. No dia 13 o embaixador Korry reuniu-se com Nixon em Washington e constatou a animosidade do presidente. O relato do que se passou no encontro está no livro “Pinochet File: A Declassified Dossier on Atrocity and Accountability”, (The New Press, 2013), de Peter Kornbluh, diretor do National Security Archive (NSA), uma organização criada por jornalistas e pesquisadores para garantir acesso público a informações de governos.“‘Aquele filho da puta, quele filho da puta’, o embaixador recorda o presidente xingando enquanto batia com o punho na palma da mão, quando Korry e Kissinger entravam no Salão oval às 12h54 no dia 15 de outubro. Quando Nixon viu a expressão de perplexidade na cara de Korry, afirmou: ‘O senhor não, senhor Embaixador. É o filho da puta do Allende. Vamos esmagá-lo”.O plano para impedir a posse de Allende resultou em uma das mais infames ações da CIA no exterior até então. A CIA deu US$ 50.000 para que o general da reserva chileno Roberto Viaux executasse a tarefa. Viaux era o militar identificado como um dos mais dispostos a agir contra Allende. A ideia era sequestrar o comandante em chefe do Exército, René Schneider, um general constitucionalista, que seria enviado secretamente à Argentina, criando clima propício a um golpe. O Congresso seria fechado e uma Junta assumiria o poder. Mas a operação deu errado: Schneider foi alvejado a tiros e morreu três dias depois no hospital sem que uma movimentação golpista surgisse.“O que está acontecendo no Chile?”, perguntou Nixon a Kissinger, de acordo com a transcrição de um telefonema à qual o NSA teve acesso. Kissinger disse que a operação tinha fracassado. Como que para ter certeza, Nixon quer saber se “eles tomariam o governo” caso algo de desestabilizador ocorresse. “Esta era a teoria” respondeu o assessor de Segurança Nacional. “Mas eles são um bando de incompetentes”, prosseguiu referindo-se aos militares chilenos.Mais de 24 mil documentos secretos do governo americano sobre o Chile foram abertos ao público. Em 1999, o presidente Bill Clinton ordenou uma desclassificação em massa de arquivos da CIA e outros órgãos, após a prisão em Londres do ex-ditador chileno Augusto Pinochet. O material cobre o período entre 1970 e 1990 – da eleição de Allende aos 17 anos da ditadura civil-militar que se instaurou após a deposição do governo socialista.Médici: Allende seria derrubado como João Goulart - Os arquivos confirmam que a ditadura militar brasileira teve papel importante no complô para derrubar Allende e colaborou com o aparato chileno de repressão após o golpe. Esta atuação está fartamente documentada, como mostra o excelente livro “O Brasil contra a democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América Latina”, do jornalista Roberto Simon, publicado em 2021.Agentes do SNI, conta Simon, foram a Santiago interrogar presos no Estádio Nacional, que nos primeiros dias após 11 e setembro se converteu em centro de tortura e execução. Muitos brasileiros haviam fugido da ditadura no Brasil, sobretudo depois do AI-5, em 1968, e buscado refúgio no Chile de Allende. Com o golpe, a brasileira foi, depois da chilena, a segunda nacionalidade mais numerosa entre os que buscaram asilo em embaixadas estrangeiras em Santiago.A operação dos interrogadores no Chile foi comandada pelo coronel Sebastião Ramos de Castro, do SNI e incluía outro coronel, o chefe do DOI-Codi de São Paulo, Ênio Pimentel Silveira, o violentíssimo Dr Ney. Os brasileiros presos no Estádio Nacional, de acordo com o livro de Simon, foram levados em fila ao centro do gramado, onde foram identificados pelos agentes do SNI que levavam fichas com fotos dos procurados.Documentos desclassificados pelos EUA mostram que dois anos antes, no dia 9 de dezembro de 1971, o ditador brasileiro, general Emilio Médici, reuniu-se com Nixon na Casa Branca. Depois de falar sobre Cuba, a situação econômica da Bolívia e o encontro que teria com o general Lanusse da Argentina, Médici é perguntado por Nixon sobre o Chile. Diz a transcrição da conversa:“O presidente Médici disse que Allende seria derrubado pelas mesmas razões que [o presidente João] Goulart foi derrubado no Brasil. O presidente [Nixon] perguntou então se o presidente Médici achava que as Forças Armadas chilenas seriam capazes de derrubar Allende. O presidente Médici respondeu acreditar que sim, acrescentando que o Brasil estava intercambiando muitos oficiais com os chilenos, e deixou claro que o Brasil estava trabalhando para este fim”.Nos dias prévios a uma reunião do Conselho de Segurança Nacional americano, Kissinger escreveu para Nixon: “A eleição de Allende como presidente do Chile representa para nós um dos mais sérios desafios jamais enfrentados neste hemisfério”. E prosseguiu: “O exemplo de um governo marxista eleito bem-sucedido no Chile certamente teria um impacto – e serviria como precedente – em outras partes do mundo, especialmente na Itália. A disseminação de fenômeno semelhante em outro lugar afetaria significativamente o equilíbrio do mundo e nossa própria posição nele.”Seis dias depois da posse de Allende, Kissinger distribuiu um memorando com selo TOP SECRET/SENSITIVE/ EYES ONLY, com as diretrizes do Conselho de Segurança Nacional. Entre elas, buscar a colaboração de outros países da região, especialmente Brasil e Argentina, para impedir ações do governo chileno “que possam ser contrárias a nossos interesses mútuos”. E orienta funcionários do governo a manter “relações próximas com líderes militares amigáveis no hemisfério”. O documento intitulado “Política em relação ao Chile”, listava as ações a serem tomadas, entre as quais:“Excluir, na medida do possível, novos financiamentos ou garantias para investimentos privados americanos, incluindo os relativos ao Investment Guarantee Program ou operações do Export-Import Bank”; “Influir o máximo possível para que para que instituições financeiras internacionais limitem o crédito ou outras ajudas financeiras ao Chile (em relação a isto, devem se fazer esforços para coordenar e obter o máximo de apoio possível a esta política de outras nações amigas, particularmente as da América Latina, com objetivo de reduzir a exposição unilateral dos Estados Unidos)”. (A integra dos documentos mencionados pode ser encontrada no site do NSC www.nsarchive.org ou diretamente no site do Departamento de Estado americano http://foia.state.gov.)Sabotagem econômica - Esta foi a postura do governo americano durante os 1001 dias que durou o governo Allende: apoiar ou fomentar ações que o enfraquecessem até o ponto de ruptura. No campo econômico, manipulou o preço internacional do cobre, afetando diretamente o principal produto de exportação chileno. Nixon queria “fazer a economia do Chile gritar”, segundo anotou o então chefe da CIA, Richard Helms, em uma reunião com o presidente. Politicamente, apoiou grupos terroristas de extrema-direita como o Pátria e Liberdade e ajudou financeiramente partidos políticos, rádios e jornais opositores. Patrocinou a histórica greve de caminhoneiros, que por 26 dias parou o país em 1972, tornando-o quase ingovernável e contribuindo para o clima golpista.As operações encobertas da CIA foram reveladas pela primeira vez em 1974 pelo jornalista americano Seymour Hersh em reportagem publicada pelo “The New York Times”. A matéria provocou um escândalo internacional e levou à abertura de uma investigação com audiências públicas no Senado, que resultou no relatório “Covert Action in Chile, 1963-1973”.Em seu testemunho à comissão, Kissinger afirmou, segundo o National Security Archives: “A intenção dos Estados Unidos não era desestabilizar ou subverter, mas continuar apoiando partidos [de oposição]”. Acrescentou em outro trecho: “Nossa preocupação eram as eleições de 1976 e em absoluto um golpe de estado como o de 1973, do qual nada sabíamos e com o qual não tínhamos nada a ver.” A publicação dos documentos secretos a partir de 1999 mostrou o contrário.Nos dias seguintes ao golpe, Kissinger instruiu o embaixador a transmitir ao chefe da Junta Militar, general Augusto Pinochet, o desejo americano de cooperar com o governo golpista. Lembrado por conselheiros do Departamento de Estado de centenas de chilenos que estavam sendo executados, Kissinger respondeu: “Por mais desagradáveis que sejam as ações deles, este governo é melhor para nós do que Allende.”Nos 50 anos do golpe, o governo americano tornou públicos novos documentos no sábado (26) depois de um pedido formal do presidente Gabriel Boric. Trata-se de parte do informe de inteligência que o presidente recebia todas as manhãs. Os arquivos abertos correspondem aos dias 8 e 11. Mostram que até três dias antes do golpe a CIA não estava segura de que Exército e Força Aérea se somariam aos planos golpistas da Marinha. No día 11, o texto fala sobre a Junta: “Embora os militares estejam cada vez mais decididos a restaurar a ordem política e econômica, ainda carecem de um plano efetivamente coordenado que vá conquistar a ampla oposição civil”.Afagos de Kissinger a Pinochet - O governo dos EUA forneceu ao regime de Pinochet ajuda financeira, militar e diplomática. Um exemplo foi a colaboração da CIA para a criação da DINA, a polícia secreta chilena que realizou grande parte dos sequestros e execuções. Em 1975, o chefe da DINA, general Manuel Contreras, recebia dinheiro da CIA. Documentos abertos em 2000 mostram que a agência teve contato com Contreras entre 74 e 77, ou seja, mesmo depois de o general ordenar o atentado que matou em Washington o ex-chanceler Orlando Letelier e sua assistente, a americana Ronni Moffitt, em setembro de 1976.Em 1976, Pinochet recebeu Kissinger em Santiago. A essas alturas, grande parte das mais de 3 mil execuções já havia ocorrido – 68% ocorreram nos três primeiros meses após o golpe – mas Kissinger preferiu evitar o tema, contrariando o conselho de seu assessor para America Latina, William D. Rogers. A transcrição da conversa entre o secretário de Estado e o ditador revela o apoio americano aos métodos do regime: “Nos EUA, como o senhor sabe, somos solidários com o que vocês estão tentando fazer aqui. (...) Vocês prestaram um grande serviço para o Ocidente ao derrubar Allende.”Num sinal de deferência, Kissinger atrasou um día seu discurso para ter tempo de advertir Pinochet que teria que falar brevemente do informe da Comissão de Direitos Humanos da OEA sobre a situação no Chile. E que o faria para evitar que Congresso americano aprovasse sanções contra o país. “Gostaria que entendesse minha posição. Queremos tratar com persuasão moral, não com sanções legais”, disse Kissinger.No discurso, nao condenou as violações de direitos humanos, limitando-se a constatar que, como apontava o informe da OEA, o tema de direitos humanos havia atrapalhado a relação dos outros membros da organização com o Chile. “Desejamos ter uma relação de amizade e todos os amigos do Chile confiam na pronta eliminação de todos os obstáculos alegados no relatório”, acrescentou.Entre os executados ou desaparecidos da ditadura estava o cidadão americano Charles Horman, jornalista cuja história foi ficcionalizada por Costa Gavras no filme “Missing”. Documentos revelam que a CIA pode ter participado do assassinato de Horman, que foi detido em sua casa em Santiago por militares em 17 de setembro de 1973. “Algumas evidências circunstanciais sugerem: a inteligência americana pode ter um infeliz papel na morte de Horman. Na melhor das hipóteses limitou-se a fornecer informações ou confirmar informações que ajudaram a motivar seu assassinato pelo GOC [Governo do Chile]. Na pior delas, a inteligência americana estava a par de que o GOC via Horman com seriedade e funcionários dos EUA não fizeram nada para evitar a consequência óbvia da paranoia do GOC. ”, diz o documento.Os EUA se afastam de Pinochet - Treze anos depois de apoiar o golpe, os Estados Unidos se afastavam definitivamente de Pinochet. Em 1986, o mundo já era outro: as ditaduras militares de Argentina e Brasil tinham terminado, respectivamente em 1983 e 1985, o fantasma do comunismo já não assombrava como antes, o Muro de Berlim cairia quatro anos depois, pondo fim à Guerra Fria.Pinochet já sofrera pressões do governo do presidente democrata Jimmy Carter (1977-1981) pela reiterada prática de violação aos direitos humanos. Mas foi o governo do presidente Ronald Reagan, um antimarxista ultraconservador, que se afastou definitivamente de Pinochet e passou a pressioná-lo a partir. A resistência do ditador era motivo de irritação em Washington. Em entrevista ao New York Times, o então secretário de Estado adjunto, Langhorne Antony Motley, disse sobre Pinochet: “[É] o maluco mais difícil que já vi. Ele faz Somoza e o resto destes caras parecerem um bando de ingênuos”.Em 1988, sob pressão, Pinochet convocou um plebiscito para que os chilenos decidissem se lhe dariam ou não mais oito anos de poder. Contra seus prognósticos, o “Não” venceu e as primeiras eleições democráticas em quase duas décadas ocorreram no ano seguinte, com a vitória de Patrício Aylwin à frente de uma coalizão liderada pelo Partido Social-Democrata. Em março de 1990, o país voltou à democracia.