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Сентябрь
2023

Allende, DOI-Codi, minha mãe

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Graças à minha mãe, a querida e saudosa Raquel Davidson, descendente da Tribo do Rei David, pudemos saber, lendo escondidos no “banheiro”, o que acontecia

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No dia 4 de setembro de 1973, minha mãe me acordou às 6 da manhã. “O pai de um amigo teu quer falar com você”, disse ela, um tanto nervosa, ainda de “pegnoir”.Meio acordado, meio dormindo, não entendi direito. Mesmo assim, desci as escadas, ainda de pijama e chinelos de palha. A porta estava aberta. Na calçada, um senhor de cabelos grisalhos, mas ainda jovem, bem vestido, cachecol no pescoço (fazia frio), pose de galã, disse que seu filho tinha ido comigo a uma festa na noite anterior e ainda não tinha voltado para casa.Eu não tinha ido a nenhuma festa, nem sozinho, nem com algum amigo. Achei a história estranha, mas fiz uma pergunta protocolar: “O senhor quer entrar ou quer que eu saia”. “Prefiro que saia”, respondeu o desconhecido.Logo que pus o pé direito para fora da porta, dois sujeitos fortes e armados com metralhadoras surgiram na minha frente. Um deles aplicou um soco no meu estômago. O outro gritou: “É você mesmo, seu filho da puta”!Fui conduzido pelos braços até a perua Veraneio, cor de caramelo, sem placas, estacionada na esquina, por um dos sequestradores. Outro invadiu a casa. Um ou dois minutos depois, esse cara também embarcou na Veraneio.“Aqui estão as provas”, gritou, esfregando na minha cara um exemplar do livro “Maravilhas do conto russo”, uma edição da revista Civilização Brasileira e um jornalzinho do DCE Livre da USP.Em seguida me colocaram um capuz preto e mandaram deitar no chão, entre os bancos. “Hitler não conseguiu acabar com vocês, nós vamos completar o serviço” ameaçou um deles, enquanto a Veraneio avançava rapidamente. Chegamos a um lugar que não pude identificar. Estava de capuz. Mandaram sentar num banco de madeira. Eu me mantive calmo. Tinha certeza de que era um engano. Eu não era militante de nenhum grupo que lutava contra a ditadura. Só podia ser um engano.Não sei quanto tempo fiquei sentado. Mas foram muitas horas. Gritos de dor vinham de várias direções. E ordens: “Vai para a solitária”!A certa altura, dois caras sentaram ao meu lado. Um de cada lado. Sem dizer absolutamente nada, um deles me dava socos nas costas e na cabeça. Outro puxava os pêlos do meu peito. Eu aguentei firme. Não dei um pio. Até que eles desistiram, desapontados com minha passividade. Queriam que eu reagisse, com gestos ou palavras, para aplicar mais castigos. “Esse cara é zen” disse um deles.Não sei quantas horas depois alguém me conduziu até uma sala do segundo andar. Uma salinha com divisórias de eucatex, mesa de escritório e duas cadeiras de madeira. Paredes nuas. Tiraram meu capuz.Entrou um cara magro, rosto ossudo, olhos esbugalhados. Mostrou um objeto que eu nunca tinha visto antes. “Se você não falar a verdade a maquininha vai funcionar”! Ameaçou enrolar um fio elétrico, conectado ao objeto, em volta de um dos meus dedos.Abriu a agenda que apreenderam no meu quarto. Passou a perguntar sobre as pessoas listadas. “Quem é Ruth Escobar”? foi uma das perguntas. “Você conhece o Davi da TV Cultura”?, foi outra. “Conheço”.Eu não sabia, mas isso queria dizer, para os sequestradores, que ele participava do meu grupo político - embora eu não tivesse nenhum. E ele fosse apenas meu colega na Escola de Comunicações e Artes da USP. No dia seguinte ele também foi preso.Depois do breve interrogatório voltei a sentar no banco de madeira. Já estava escuro quando um sujeito mandou acompanhá-lo. Saímos por uma porta, ele tirou meu capuz. Caminhamos por uma espécie de quintal. Pela primeira vez tomei coragem e falei com alguém: “Deve haver algum engano. Eu não sou de nenhum grupo político”. Ele me encarou e respondeu calmamente: “É sim. Você é o Hippie da A.P. E nós vamos provar”!Eu nem sabia o que era A.P. Com hippie eu poderia ser confundido, graças à minha barba e meus cabelos longos. Demos alguns passos até o cara abrir uma das celas. Havia apenas um colchão sobre o chão e sobre o colchão um homem que dormia. O meu algoz abaixou-se até ele. “Você conhece esse cara”? perguntou, apontando para mim. “Não”, respondeu o preso.Quando ficamos a sós, meu companheiro de cela pediu que o ajudasse a ir até o “banheiro”. Foi aí que eu vi que ele mal conseguia andar. Estava todo machucado. “Aquele era o chefe aqui do DOI-Codi”, disse ele. “O Brilhante Ustra”.Escrevi banheiro entre aspas porque aquele pedaço da cela tinha uma pia, um cano que fazia as vezes de chuveiro e uma latrina. Dali a alguns dias seria o lugar mais importante para nós.A praxe era a incomunicabilidade ser quebrada no sétimo dia de prisão. O carcereiro, chamado Alemão, alto e magro, sempre de japona, me perguntou, enquanto servia o café da manhã, o que eu queria de casa. “Lápis e papel”!, respondi. Ele riu: “Isso não pode”!Fiz meus pedidos. No dia seguinte, na hora do almoço, Alemão trouxe, numa sacola, uma panela, talheres, frutas e outras guloseimas. Para manter a panela quente, minha mãe a embrulhou em várias folhas de jornal.Ao desembrulhar a panela, descobri que era o jornal do dia. O Jornal da Tarde. A manchete dizia que Allende estava morto e os militares tinham tomado o poder no Chile.Graças à sua lábia e coragem, minha mãe convenceu os meganhas de que eu estava sob regime de comida macrobiótica. Todos os dias, durante os 45 dias da minha prisão eu e meu companheiro de cela nos livramos da comida de porco servida naquela delegacia do II Exército, ela cozinhava divinamente, o que foi fundamental para a sobrevivência dele, torturado dia sim, dia não, porque se recusava sequer a dizer aos torturadores como se chamava, o que só confessou após nove horas na “cadeira do dragão”.E também graças à minha mãe, a querida e saudosa Raquel Davidson, descendente da Tribo do Rei David, pudemos saber, todos os dias, lendo escondidos no “banheiro”, o que estava acontecendo no país, e que os nossos sequestradores faziam de tudo para esconder de nós. Foi aí que me veio uma frase à cabeça: a felicidade do conhecimento é o conhecimento da felicidade.











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