Testamento
img src="https://cdn.brasil247.com/pb-b247gcp/swp/jtjeq9/media/20231031111024_867a82e6633edb39925d5495585108919648a02807f682b92a50eb1642adccdd.png" width="610" height="380" hspace="5" /
Vi todas as guerras e ignomínias, assisti a cada solidão de fome e desespero, mas sempre morei na esperança de podermos cear juntos em mesas de paz
br clear="all"
Não me levem a mal, meus filhos. Se me expresso de forma tão pouco compreensível, até enigmática, é porque nem eu posso dizer tudo o que penso e quero. Mesmo após tantos anos de nossa história em comum, de planos traçados e utopias enlouquecidas. Confesso: já não sei o que lhes prometer, tenho receio de romper o acordo sagrado e não poder mais calar, diante de tanta destruição. De perder a fé em mim.É que a própria palavra parece ter se perdido, nos desencontros de nossa antiga aliança. A palavra da encarnação inaugural, que rompeu o silêncio dos tempos sem luz. Aquela dada de presente, que depois vocês e seus semelhantes – será que posso falar assim, sem ironia? - juntaram em torres de Babel e dicionários, tentando preencher os vazios em arte e especulação. Tudo por não conseguir sentir o que verdadeiramente se passa no coração humano.Vi todas as guerras e ignomínias, assisti a cada solidão de fome e desespero, mas sempre morei na esperança de podermos cear juntos em mesas de paz, e assim me libertar do jugo desse vosso livre arbítrio. Todos sabemos o que precisa ser feito, não são de todo vãs as promessas de redenção. Falo de gestos de mútuo horizonte, de um mundo se sabendo um só, mesmo depois do carnaval. De afetos a se espalharem em frutos de novas e variadas sementes, sem pretensões de hegemonia. Até propus inventarmos uma nova linguagem de amor divino-filial em sacrifício, lembram? Essa lição que os mísseis ainda teimam em converter em gritos, de ódio e de dor. São de novo os arquitetos do silêncio, os demolidores da palavra, buscando desfazer o poder do encontro, em seus delírios de medos e de perigos inventados, de lucros garantidos. Usam o poder luminoso de suas órbitas guiadas por satélites, em caminhos de extrema precisão. Seus bilhões de dólares engordando o medo industrializado. Enquanto as bombas inteligentes caçam inimigos no íntimo dos lares, multiplica-se o grande vazio. E no coração das partículas explode a ganância da tresloucada desordem, fazendo da noite dia, no brilho de um espetáculo que não pode parar. São novas bênçãos de chuva metálica a cair do céu, espalhando-se em milhões de sóis incandescentes, adentrando as carnes das crianças na Palestina. Herodes tecnológicos em diferentes formatos, cumprindo a profecia em renovados olhos guiados, que decepam sem ver.Nada pode concorrer com essa mudez crescente, impotente a palavra sem o ar que a repercute. Não sei para onde me fui nessa invisível estrada, cansei de chamar por mim. E em meio aos clarões incessantes que abafam gritos e criam destroços, chamo a palavra de volta, escrevo meu último testamento: ele ficará inscrito no rosto dos que esperam.