Ambulantes 'acampam' em viaduto para tentar garantir licença para o Carnaval e demais festas
Próximo licenciamento será no dia 30, apenas para Festa de Iemanjá, e sem 'qualquer lista de preferência', diz Semop
A pouco menos de um mês do Carnaval, vendedores ambulantes ‘acampam’ debaixo de um viaduto localizado ao lado da Secretaria de Ordem Pública de Salvador (Semop), em sentido à Avenida Gal Costa. De acordo com os trabalhadores, o objetivo é garantir o cadastramento para a folia momesca e as demais festas populares que acontecem no próximo mês.
A Semop, contudo, informou que a portaria municipal prevê o licenciamento até o Furdunço, no dia 12, e que, “portanto, ainda não há protocolo de cadastramento para o período oficial do Carnaval, o que será divulgado amplamente quando ocorrer”.
A secretaria também comunicou que, “segundo a legislação, o próximo licenciamento do calendário acontece no dia 30 de janeiro, para a Festa de Iemanjá" e que, “como ocorre em todos os anos, divulga o cronograma com antecedência”.
Além disso, o órgão afirmou que monta uma operação especial para receber os interessados nos licenciamentos, o que dispensaria a necessidade de filas prévias. “A Prefeitura também informa que, conforme previsto na portaria, não será criada qualquer lista de preferência”, acrescentou à nota.
Enquanto o cadastramento para festas populares até o Furdunço deverá ser feito presencialmente, o destinado ao período oficial do Carnaval se dará pela internet. As taxas cobradas pela prefeitura para a concessão da licença variam de R$ 25,06 a R$ 451,13.
Valores para licenciamento vão desde R$ 25,06 até R$ 451,13 (Foto: Divulgação) |
Tudo por um lugar na fila
Primeira a ter se instalado sob o viaduto, Roselene Santos, de 54 anos, chegou ao local no dia 11, às 5h, quase três semanas antes do previsto para a realização do processo pela Semop. “A gente tem um grupo de ambulantes [no WhatsApp], e eles tavam comunicando que iam sair da Lavagem do Bonfim e vir pra cá. Como eu tô com minha filha operada, precisava garantir o primeiro lugar pra ela”, justificou a vendedora.
Para a filha de Roselene, Michele Costa, 38, falta organização à secretaria. “Se a gente vier pra cá dia 30, não consegue a licença. […] Já é uma situação recorrente: no último Carnaval, nós ficamos 15 dias aqui na porta da Semop e fomos as primeiras também”, reclamou Michele.
Ela ainda recordou o episódio ocorrido durante o cadastramento para o Festival Virada Salvador, quando ambulantes se aglomeraram em frente à sede do órgão. “As pessoas que dormiram dias antes sofreram e terminaram conseguindo, e as que chegaram um dia antes não conseguiram”, contou a trabalhadora.
Na ocasião, por causa da alta procura, a Semop disponibilizou 150 licenças a mais para a festa de réveillon — inicialmente, eram 600. No entanto, pessoas que não tinham sido contempladas permaneceram no local, e, à noite, um grupo ateou fogo em objetos e bloqueou o trânsito na Avenida Cardeal Avelar Brandão Vilela, no bairro da Mata Escura, pedindo mais vagas para trabalhar.
Já no caso da Lavagem do Bonfim, o procedimento ocorreu de forma bem mais tranquila: apesar da fila, todos os 545 trabalhadores, entre baianas, ambulantes de isopor e food trucks, puderam se cadastrar na Semop, que tinha oferecido vagas ilimitadas, desde o início da manhã até o fim da tarde.
Até 300 pessoas se revezam no 'acampamento'
No momento em que a reportagem esteve no local, havia cerca de 30 pessoas — majoritariamente, mulheres — ocupando o entorno das quatro pilastras que sustentam o viaduto. Mas, segundo Michele, o número total chega a ser dez vezes maior.
“Já temos uma lista de 300 pessoas. Elas vêm e colocam o nome”, estimou ela, que, além da mãe, está acompanhada por outros seis familiares na luta pela licença. “Aí, a gente vai sempre revezando: duas ou três pessoas da família ficam e uma sai pra trabalhar, porque a vida continua, né?!”
Como a maior parte, Leandro Bahia, 41, chegou, na sexta passada (13), ao local, de onde não saiu ainda. "Festejei meu aniversário aqui”, contou o homem. Para sobreviver, eles levam alguns alimentos de casa. Mas nem sempre é suficiente. “Todo dia, 20 reais de almoço. E aí, ‘guenta’ com isso?!”, ironizou Leandro, que é beneficiário do Bolsa Família, e revelou que as demais necessidades fisiológicas são supridas pelo banheiro de um posto de gasolina.
Questão de sobrevivência
Se já está difícil para quem tem outra fonte de renda, a situação só se complica ainda mais para vendedores ambulantes como Alzenice Pereira, 44, que não tem com quem deixar a filha, menor de idade. “Se a gente quer vencer na vida, tem que guerrear. Porque, se não trabalha e vai roubar, é preso; se vem trabalhar, é discriminado”, disse Alzenice.
Pela mesma necessidade, Carla Melo, 25, resolveu ‘acampar’ debaixo do viaduto com a mãe, o esposo e o filho, uma criança com deficiência. “A única forma de recorrer é no mercado informal, com essas oportunidades do ano”, lamentou-se a jovem.
Necessidade levou Carla Melo a 'acampar' no viaduto com o esposo e o filho, que tem deficiência (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
Conforme a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao terceiro trimestre do ano passado, a Bahia tem 1,070 milhão de desocupados, com uma taxa de desocupação de 15,1%. Com 284 mil desocupados, Salvador possui uma taxa superior à do estado, 17,9%.
Quanto aos desalentados — que são pessoas que gostariam de trabalhar, porém não procuram trabalho por achar que não encontrariam —, o IBGE dispunha apenas do quantitativo estadual, 602 mil.
Também segundo o instituto, devido aos 15,1%, a Bahia se manteve com a maior taxa de desocupação no país ao longo dos três primeiros trimestres 2022 — a taxa nacional foi 8,7%.
Embora tenha havido uma redução em comparação aos dois anos anteriores, afetados pela pandemia, a supervisora de Disseminação de Informações do IBGE no estado, Mariana Viveiros, considera essa mudança ‘discreta’.
“Continuamos com a maior taxa de desocupação, o que mostra a dificuldade do mercado de trabalho baiano em absorver a demanda por trabalho. E não é só emprego formal; é qualquer trabalho, como o de ambulante”, esclareceu Viveiros.
“As festas do verão, de uma forma geral, são oportunidades que as pessoas encontram de ter um trabalho. [...] E a informalidade é muito importante para o mercado de trabalho baiano”, destacou a supervisora ao relembrar que a última Pnad Contínua tinha apontado que mais da metade dos trabalhadores locais atua na informalidade.