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A vontade de ser Rita Lee

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Quando eu terminei de assistir à série Anthology dos Beatles, lá no princípio da vida adulta, eu tomei uma decisão existencial: eu queria ser como eles. Não me tornar um músico, não deixar uma farta cabeleira e montar o bigode, não ganhar a fama maior que a de um símbolo religioso, mas viver como uma  canção do Abbey Road, que é compacta, simples, melódica e que, ainda assim, ou por isso mesmo, transcende. Em outras palavras, ser um “beatle” é estar nas estruturas e ser compreensível para os outros, ao mesmo tempo em que escapa, em que aprofunda e diz algo novo, vibrante. É um desejo, ora. Podemos ser grandiloquentes na vontade, que seja.

Rita Lee foi quem cumpriu muito tempo antes esse meu desejo. Na verdade o meu desejo só foi imaginável porque um dia Rita Lee o cumpriu e o tornou um caminho. Não é isto que o filósofo estoico Sêneca mais recomendava às pessoas, a de deixar um rastro que mostre que por onde ela passou outros também poderão passar? Ela, uma beatlemaníaca de origem, soube justamente dizer que era possível ser mainstream e transgredir, andar de patins em um clipe para o Fantástico, chegando na casa de todas as famílias em seus sofás, e soltar um tsi tsi de lança perfume e pedir para seu par romântico enchê-la de amor. A tropicalista de origem e de alma cumpriu a meta de Caetano Veloso no discurso de É Proibido Proibir: saber entrar em todas as estruturas e sair de todas elas. 

Não é um papo cabeça e é também. Ora, em 1979 Rita Lee desbancou Desabafo de Roberto Carlos e emplacou Mania de Você como a música mais tocada nas rádios do Brasil. Estamos falando de alguém que atravessou FMs, AMs, em antenas ligadas nos chevettes, caminhões, portarias, novelas e faxinas. Com Roberto de Carvalho, seu par mais que perfeito, compôs Perigosa para as Frenéticas e entoou para que todas as mulheres do país dissessem: “Eu sei que eu sou bonita e gostosa...” Ao mesmo tempo, era uma das poucas autorizadas a pisarem no palco sagrado de João Gilberto e gravar em dueto com ele, em 1982, uma bossa nova feita sob a melhor encomenda: “Quem te conhece não esquece/Meu Brasil é com S”.

Porque Rita Lee é comparada a David Bowie, a Mick Jaegger, tem Lee Jones no sobrenome e parece ter saído de cabelos vermelhos e tudo da capa do Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band, mas ela é Brasil com S. S de São Paulo, que conseguiu enfim ter sua mais completa tradução ecoada pelo restante do território, quando tantos brasileiros tentavam entrar ali porque precisavam, mas não entendiam a possibilidade de nossos campos, mares e rodovias também esbarrarem em uma metrópole tão imensa. Ela foi a chave-mestra de interpretação para um Brasil também elétrico, de guitarras e teremim, também gótico e sci fi, com vampiros, astronautas e discos voadores (por que não?). Rita Lee é a Via Dutra da cultura nacional.

E soube ir ao mais difícil e fundo da cultura: alterar comportamentos. Em sala de aula eu perguntei aos meninos e meninas se eles não deviam também a ser como são porque existiu no cenário popular uma pessoa como “Santa Rita das Ovelhas Negras”. Quantas pessoas se sentiram menos desamparadas ao serem expulsas de casa por seu jeito de ser, ao ouvir a grande canção? Quantas mulheres, nossas mães ou avós, podem ter decidido pôr um fim em um casamento abusivo ao escutar Agora só falta você? Quantas pessoas sonharam, ao lavarem roupas no tanque e colocarem a roupa no varal, que aquelas bolhas de sabão poderiam se tornar um Banho de espuma e a modorra da vida também ser alegria e sexualidade? Diz o perfil @CavalonaOficial no Twitter: “A morte de Rita Lee é um ótimo lembrete para nós mulheres enlouquecermos de vez (...) gritaria, sutiã pegando fogo, prato quebrando, é isso aí e mais um pouco"” Ou @luafolli: “rita lee está pra nós mulheres malucas como messi está pra héteros”. 

Nenhuma das duas tem mais de trinta anos. E posso afirmar que as mulheres de menos idade ainda se sentem nessa conexão. Eu soube da morte fatídica, quando a notícia foi publicada às 11h do dia 09 de maio, por um berro de uma estudante de catorze anos. Ela não teve cerimônia em soar o rompante para toda a sala, mesmo em meio a uma explicação. Ainda bem. Logo outra garota pegou o celular para ligar para sair e ligar para o pai, não sei se para consolar ou para ser consolada, ou os dois. Imediatamente outras pediram para tocar no computador músicas em homenagem, e os seus pedidos especiais foram Amor e Sexo e Reza, cantando cada verso por inteiro. Eu não me lembro de ter presenciado um fenômeno assim com um ícone tão anterior à geração atual.

No dia seguinte, uma aluna mais velha me mostrou o trecho da Profecia de Rita Lee em relação ao futuro acontecimento de sua própria morte, um trecho de sua Autobiografia, publicada em 2016: “Epitáfio: Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”. De fato, a nossa cantora continua altiva e rock’n’roll, com uma juventude permanente, o que explica o sorriso e o orgulho de minha aluna, é certo. E não é mesmo um “bom exemplo”, o que ouvi com um tom severo de um rapaz, em outra sala, pois teria a artista todo um “envolvimento com drogas”. Eis um juízo de valor que não só ele, mas até editoriais de grandes jornais expressaram. Para Rita Lee é um fato, jamais hipocritamente negado. Se este é um ponto, podemos ao menos dizer que ela fez muito menos estrago com alguma alteração química enquanto compunha, do que muitos senhores com camisa de manga longa enquanto fazem day trade... 
    
Então eu tenho o desejo de que muitos queiram ser como Rita Lee: saber construir a partir da própria rebeldia, transgredir os limites do normal sem perder as possibilidades do diálogo, fazer sorrir enquanto quer fazer mudar.


Saulo Dourado é escritor de livros de ficção e professor de filosofia em colégios de Salvador
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores

 











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