Uma propaganda me fez chorar
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Silenciosa, majestática, divina, precisou chegar aos 86 anos para enfim ser colocada no topo da pirâmide da música brasileira, diz Solnik sobre Alaíde Costa
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Não tenho o costume de ler textos de anúncios publicitários nos jornais, sobretudo textos compridos, espalhados por duas páginas de jornal standart. Mas o título me fisgou: “Errata de 70 anos”. Embaixo dele, uma foto em oito colunas (o que é raro num jornal) revela o rosto de uma grande artista ao mesmo tempo muito e pouco conhecida. Posso estar enganado, mas nem mesmo no auge da carreira, nos anos 60, Alaíde Costa ganhou tanto espaço na mídia. Talvez por timidez nas entrevistas, talvez por jamais ter se envolvido em escândalos, talvez por ser preta em meio à branquitude da bossa nova. Nunca por falta de talento.A sua voz, afinadíssima, suave, translúcida, única e inconfundível (“voz de veludo”, diziam os críticos) emocionou o Brasil desde a primeira vez em que ela cantou, em 1964, os versos de “Onde está você”:“Hoje a noite não tem luar
e eu não sei onde te encontrar
pra dizer como é o amor
que eu tenho pra te dar”Eu sempre as entendi como palavras mágicas. Cantadas quase à capela, me transportavam para um mundo onírico, no qual eu me via numa noite sem luar à procura do meu primeiro amor.Nunca mais esqueci os versos. Canto para mim mesmo até hoje. Me acalmam. Me dão horizonte. Me dão a certeza de que vai amanhecer:“Vem depressa de onde estás
já é hora do sol raiar
meu amor que é grande não
pode mais esperar”O rosto e a voz de Alaíde sempre foram sinônimo dessa pequena obra prima da música popular brasileira, o que seria suficiente para lhe garantir lugar no panteão da glória musical e uma renda para toda a vida. Não foi, no entanto, o que aconteceu.Outros sucessos e outros aplausos vieram, mas a imprensa nunca lhe deu o espaço devido, nunca a consagrou como “uma das mães da bossa nova”, como nesse texto publicitário. Precisou uma marca de uísque estrangeira comprar duas páginas de jornal para dizer aos brasileiros que “ao longo de sete décadas de carreira, Alaíde nunca parou de cantar, gravar ou se apresentar em shows”; “mais que uma cantora brasileira, Alaíde Costa é uma das poucas lendas vivas da Bossa Nova”.Precisou uma marca de uísque estrangeira contar para nós, brasileiros, que, atualmente, “Alaíde Costa está em estúdio gravando mais um disco (o 26o. da sua carreira) e já lançou dois singles do novo trabalho” (alguém ouviu em alguma rádio ou na TV?) “e está em turnê por todo o Brasil com três shows” (alguém leu alguma notícia a respeito?).À medida que eu lia a propaganda, algumas lágrimas começaram a chegar aos meus olhos, sem que eu pudesse evitar. E se tornaram torrenciais depois da última frase:“Vamos juntos dar o espaço que Alaíde merece”?Silenciosa, majestática, divina, precisou chegar aos 86 anos para enfim ser colocada no topo da pirâmide da música brasileira.