"Nenhuma regulamentação é possível. Regular significa normalizar e generalizar o comércio da vida humana e a exploração do corpo das mulheres", diz Aline Souza
Barriga de Aluguel. Quem é muito jovem, certamente não vai se lembrar, mas uma grande emissora de TV do Brasil em 1990 produziu uma novela de grande sucesso com esse nome (link). Mais ou menos nessa mesma época (1985) foi escrito o livro o “Conto da Aia” de Margaret Atwood, escritora canadense que faz uma reflexão sobre liberdade, direitos civis, a fragilidade do mundo tal qual o conhecemos, o futuro e principalmente, o presente.
No livro, uma narrativa histórica distópica com perspectiva original e feminina, vemos a República de Gilead prosperar sob leis sagradas do Antigo Testamento e condenar mulheres férteis a uma categoria de procriadoras: as Aias. Nada mais atual nos dias de hoje em um contexto em que está em debate a maternidade de substituição na Europa, algo que já vem sendo praticado em muitos países da América Latina também. Mas você sabe o que isso significa? Está sendo debatido quase que em sigilo em Haia, na Holanda, um projeto que visa regulamentar a prática bastante parecida com aquela narrada pela escritora, a de reduzir mulheres a meros úteros capazes de gerar vida e fazer o que está sendo chamado de maternidade de substituição. Isso significa basicamente o aluguel de úteros para fins de procriação, mas as leis e regras para isso mudam de país para país, ou melhor dizendo, de mercado para mercado. Afinal, embora não haja leis claras sobre o procedimento, em alguns locais a prática segue a todo vapor com padrões arbitrariamente criados.
A maternidade de substituição afeta principalmente mulheres em situações de vulnerabilidade como em conflitos civis, guerras, fome, êxodos em massa, toda sorte de desalentos, se tornando uma saída desesperada para algumas jovens que se veem perdidas e precisando de dinheiro, um caminho que o capitalismo encontrou para mercantilizar a vida. Falamos de exploração porque existe sempre uma relação desigual, do ponto de vista econômico e social, entre os patrocinadores/pais de intenção e a mulher que se oferece para ser mãe de aluguel. A gravidez em troca de dinheiro não é um meio de emancipar a mulher, mas de explorar as suas capacidades de reprodução e instrumentalização do seu corpo.
A luta de mulheres feministas pelos direitos reprodutivos sempre tenta vincular a importância da vida da mulher de uma forma integral, e não separá-la do seu útero, órgão capaz de gerar e que faz parte de seu corpo como um todo. O útero não deve ser dissociado do ser humano que o carrega sob o risco de menosprezar a vida da mulher em detrimento de outra que ela possa vir a carregar. Portanto, no debate público sobre a questão do aborto e dos direitos reprodutivos, estamos enfatizando constantemente a necessidade de valorizar a vida da MULHER enquanto ser humano e ser vivente, pleno de suas funções e capacidades, uma vez que se defende por aí a “vida” de forma vaga, sem que haja respeito algum pela vida das Mulheres e pessoas que gestam (apesar de ser possível que um homem trans seja recrutado para a gestação pelo fato de possuir um útero, esta não é a realidade global do que acontece mundo afora). Esse projeto da maternidade de substituição justamente vai na direção contrária e personifica ainda mais apenas um órgão do corpo feminino, como se pudéssemos separar útero de Mulher ou da pessoa que gesta, como se o útero tivesse mais importância do que o ser humano com capacidade de gestar nessa equação. As principais consequências da homologação desta convenção é a facilitação do acesso à maternidade de substituição em escala global e a legitimação e aceitação social da prática via propaganda publicitária.
Entenda o caso
Desde 2016 um grupo de 34 “experts” da Conferência de Haia - HCCH esteve encarregado de estudar e emitir um relatório final (link) sobre a viabilidade de uma convenção de direito internacional privado para tratar da filiação em casos de maternidade de substituição. Este relatório foi favorável à elaboração da convenção e no último dia 13 de novembro, aconteceu a primeira reunião de um GT (grupo de trabalho) que começou a preparar a elaboração da convenção. Este GT deve ser composto por representantes de cada estado membro da Conferência de Haia, um total de 91 países. Como os trabalhos da HCCH não são transparentes (nem democráticos), não sabemos quem são as pessoas envolvidas até o momento. Além disso, o tema é extremamente invisibilizado, existem muitas cadeias ilegais, as clínicas obviamente não fornecem dados, muito menos os governos. Nesse mesmo dia foi organizado pela Coalizão Internacional pela Abolição da Maternidade de Substituição (CIAMS), criada em 2018, um protesto (vídeo) em frente ao escritório da Conferência de Haia contra a regulamentação da maternidade de substituição, ou da "barriga de aluguel" transfronteiriça. Embora não tenha chamado a atenção da grande mídia global (afinal assuntos de mulher não merecem destaque), o protesto contou com a participação de mulheres de vários países: França, Espanha, Itália, Roménia, Grã-Bretanha, Suécia, Suíça, Canadá, Japão, Brasil.
Na semana anterior ao protesto, lideranças feministas da CIAMS conseguiram uma reunião com Christophe Bernasconi, Secretário-Geral da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH) e fizeram um relatório posterior. Não tive acesso ao documento que circulou entre as entidades que compõem a coalizão, mas no dia da votação as manifestantes foram ignoradas por Bernasconi e sua equipe. Toda a discussão gira em torno do argumento de que os acordos internacionais de barriga de aluguel podem levar a dificuldades quanto à avaliação ou reconhecimento da filiação legal da criança ou das crianças nascidas em decorrência do acordo, gerando “crianças sem pais”, o que afetaria os direitos fundamentais dessas crianças. Para as especialistas da CIAMS, trata-se de um olhar dirigido apenas ao interesse dos pais encomendantes e não ao verdadeiro bem-estar da criança que é o de não ser comercializado como um produto, e nem o bem-estar da mulher geradora que é obrigada a seguir com a gravidez sem criar nenhum tipo de vínculo com aquele ser que habita seu útero, um ser humano reduzido a objeto de negociação, comprado e encomendado sob medida como uma mercadoria. Segundo a organização, que reúne mais de cinquenta associações feministas e de direitos humanos de 14 países pela abolição dessa prática de forma internacional, há uma necessidade urgente de protagonizar as análises feministas da maternidade de substituição para que a realidade dessa prática não seja mais escondida e não seja mais apresentada como um ato de generosidade por parte das mulheres. Com o apoio de seus membros e de várias centenas de organizações em todo o mundo, a CIAMS quer mostrar a realidade dessa prática do ponto de vista das mulheres e desconstruir seu propósito de mercado rentável, que nada mais é do que a exploração de mulheres e crianças em benefício de um sistema neoliberal em rápida expansão. Segundo o que me explicou Marcela Jacob, brasileira, responsável pela advocacia internacional da CIAMS, a convenção terá que ser ratificada ou não pelos estados membros da União Europeia, sendo provável que seja aprovada e aconteça nos próximos dois anos, mas as etapas futuras são obscuras. “O que se sabe é que dentre os especialistas que estão decidindo essa questão em Haia, pode haver advogados que trabalham especificamente em defesa do mercado de barriga de aluguel, o que nos dá ideia quais interesses estão em jogo”, disse ela. O resultado apresentado após 6 anos mostra que a abordagem à barriga de aluguel não é apropriada: a regulamentação às custas de violações dos direitos humanos não deve ser permitida.
Capitalismo lança seus tentáculos mais uma vez
A indústria e sua capacidade extrativista está desumanizando, mediante contrato prévio, tanto o ato de gerar vidas como os corpos das mulheres e sua capacidade reprodutiva, que se torna objeto com valor de mercado. Exploradas uma vez mais, sem nenhum direito sobre os bebês que geram, as mulheres vão ficando à mercê dos interesses dos intermediários dessa indústria da maternidade de substituição, destinadas à procriação para outras pessoas que encomendam seres humanos.
Em outras palavras, o que estamos lidando aqui é com um contexto de normalizar o útero alugado dentro de um sistema capitalista e tecnocientífico, que visa normalizar a reprodução artificial como a nova forma de vir ao mundo. O ser humano pode estar prestes a se tornar um produto de laboratório. Do direito da criança, que pouco é respeitado mundo afora, passaremos ao direito da criança selecionada e geneticamente modificada.
E se você está se perguntando se vale a pena financeiramente para uma mulher se prestar a todos os procedimentos que são exigidos para ser uma mãe de substituição, o que inclui várias medicações hormonais, viver separada de seus familiares sob câmeras de vigilância e alto monitoramento de todos os seus passos, a resposta é: não sabemos. Estes dados não são públicos, quem estipula os valores são as clínicas de recrutamento de mulheres em intermédio com os patrocinadores. Não há dados oficiais. O que se sabe é que a Europa é de longe o principal patrocinador de crianças no mundo e nas Américas, EUA e Canadá. Ou seja, eles que deram lições ao mundo inteiro sobre direitos humanos, mas são os que mais exploram as mulheres mais pobres (de outros países!) como incubadoras para obter filhos.
Uma pesquisa, entretanto, apontou dados estimados em que a compensação financeira varia de acordo com o país de origem da mãe de aluguel. De acordo com os dados, na Ucrânia esse número pode chegar a 20 mil Euros, nos EUA 16 mil e na Rússia, 12,5 mil Euros. Na Índia, o
maior do investimento de um casal (26,5 mil Euros) é destinado para as fases de concepção do bebê (65%) e nascimento (15%). Com os custos da mãe de aluguel e o rastreamento dela ficam 12% e 8% do total respectivamente.
Devemos defender a inviolabilidade do corpo feminino, como forma de defender a inviolabilidade de todos os corpos. Toda redução do corpo feminino a uma mercadoria é uma violência contra as mulheres e contra o mundo. Obviamente, isto também se aplica ao útero alugado. Nenhuma forma de regulamentação é possível. Regular significa normalizar e generalizar. O debate em torno do útero de aluguel é ético, não podemos pensar em regular o abuso, a violência, a exploração do corpo, a mercantilização da vida, a compra e venda de crianças, pois é disso que se trata.
Achei um útero! Eugenia como pano de fundo
Na maioria dos casos de útero alugado, o óvulo não pertence à mulher que está grávida, é comprado por outra mulher no grande mercado de aquisição de óvulos e no biomercado. O útero alugado fragmenta o processo de procriação que se torna uma operação técnica e se insere no paradigma das clínicas e laboratórios que não conhecem limites, no qual tudo o que é tecnicamente possível se tornará eticamente aceitável. O ser humano não pode tornar-se objeto de um contrato, não pode tornar-se uma mercadoria que os pais compradores possam devolver ao remetente se não satisfizer determinadas características. Há relatos compartilhados pela equipe da CIAMS de que quando um casal encontra uma mulher disponível para ser usada como mãe de aluguel, eles exclamam: Achei um útero! A quem interessa que uma regulamentação como essa aconteça? A demanda por uma regulamentação deste porte parte dos maiores interessados na facilitação do acesso à Maternidade de Substituição: são clientes (casais ricos em sua maioria também de países ricos); as clínicas, laboratórios e demais profissionais que prestam este serviço de forma global; e dos próprios países membros que deixam de ter que lidar com a dificuldade jurídica da questão nacionalmente. Tudo isso à revelia do debate ético em torno da exploração da capacidade de procriação feminina.
De acordo com Marcela Jacob, do ponto de vista jurídico, “a intenção de regulamentar a filiação é motivada pelo fato de que a filiação é matéria de competência de direito privado e, portanto, é através dela que a HCCH conseguiria regulamentar a maternidade de substituição em si. Na prática, o que a HCCH quer fazer com esta convenção internacional é harmonizar as leis dos países produzindo uma convenção que dispõe sobre a filiação em casos de maternidade de substituição facilitando o reconhecimento da filiação para casais ricos que vão ao exterior explorar uma mulher e encomendar a criança”, explica.
O que já existe em outros países
Já existem países onde a maternidade de substituição é liberada, outros onde não há lei específica, como é o caso do Brasil e outros em que é uma prática proibida expressamente. Isso faz da barriga de aluguel um fenômeno globalizado, pois os casais (em sua maioria de países ricos ou das classes mais altas) recorrem a mulheres de outros países para a barriga de aluguel acontecer onde há autorização. No entanto, depois desse período, eles voltam com a criança para seus países de origem para registrá-la como filha deste casal/pessoa, momento em que acontece o conflito de normas entre os países no sentido de responder de quem aquela criança seria filha. Em muitos casos de maternidade de substituição, a filiação acaba não sendo reconhecida diretamente, ou seja, o reconhecimento e registro do nome dos pais na certidão de nascimento da criança não é uma regra em todos os países. Em muitos lugares a mãe é, por lei, considerada aquela que gesta e pari o bebê. Por exemplo, um casal brasileiro que foi até a Ucrânia para recorrer à maternidade de substituição e deseja voltar para o Brasil com a filiação reconhecida. Qualquer problema que ocorrer no registro dessa criança, eles poderiam fundamentar o seu direito com base na eventual Convenção da HCCH. O mesmo para um casal da França (onde a prática é proibida) ir à Grécia (onde é legalizada) e voltar com a criança para a França sem grandes problemas. Um verdadeiro comércio de seres humanos legalizado globalmente. Na Grécia, inclusive, em agosto deste ano aconteceu a prisão de uma quadrilha de tráfico de bebês em Creta. Um grupo criminoso que obteve ganhos substanciais com cada programa de barriga de aluguel, variando entre 70 mil e 100 mil euros. Em certos casos, esta empresa nefasta conseguiu acumular até 120.000 euros. Desde dezembro de 2022, foram documentados um total de 182 incidentes envolvendo a exploração de mulheres na coleta de óvulos e prática da barriga de aluguel. A clínica de fertilidade situada em Creta revelou uma contagem alarmante de mais de 400 casos envolvendo práticas enganosas relacionadas com a fertilização in vitro simulada. A Polícia local apontou indícios da vulnerabilidade de certas mulheres, que foram manipuladas pela quadrilha para se tornarem doadoras de óvulos e mães de aluguel. A quadrilha ainda facilitava o transporte de migrantes da Turquia e outros cidadãos estrangeiros, fornecendo-lhes documentos falsos e transferência ilegal para a Grécia, facilitando sua partida para outros países através do Aeroporto de Atenas. Na Ucrânia, a prática de barriga de aluguel é liberada. Em decorrência da guerra contra a Rússia, várias mulheres gestantes de aluguel ficaram em apuros, o que preocupou bastante os casais “donos” daquela gravidez, como foi relatado em uma reportagem da BBC que faz parecer a maternidade nessas condições como o melhor dos mundos. Essas mulheres foram obrigadas a se separar de suas famílias, pais, maridos e outros filhos para acompanhar os casais que haviam contratado a maternidade de substituição e alugado seus úteros. Após o nascimento dos bebês encomendados, na maioria dos casos elas serão descartadas. Mais de 2.000 crianças nascem através de barriga de aluguel todos os anos na Ucrânia, a maioria de casais estrangeiros. O país tem cerca de 50 clínicas reprodutivas e muitas agências e intermediários que combinam casais – conhecidos como “pais pretendidos” – com substitutos. Na Ucrânia, os pais substitutos não são listados na certidão de nascimento (como o é no Reino Unido), de modo que o país atrai muitos casais pela facilidade que a legislação proporciona. A maior agência da Ucrânia tem atualmente 500 barrigas de aluguel em diferentes fases da gravidez. No contexto da guerra, todos os dias nascem mais crianças, mas muitos deles já estão abandonados na região de conflito, desde a invasão apenas nove casais de pais arriscaram viajar até Kiev para ir buscar os bebês comprados. A Inglaterra criou um visto personalizado pelo Ministério do Interior para mães de aluguel. No continente Australiano, desde 2022, nos estados de Queensland, apenas a barriga de aluguel supervisionada e altruísta é permitida, feita por caridade. A lei prevê prisão de até 3 anos para quem for acusado de negociação de contratos de barriga de aluguel dentro ou fora do país. Na Itália, a barriga de aluguel é proibida por lei. O projeto de lei “Útero para alugar é crime universal” foi aprovado na Câmara, tornando punível o recurso à maternidade de substituição mesmo para cidadãos italianos que iriam para o estrangeiro. Está aguardando aprovação final no Senado e deve entrar em vigor em 2024.Na Colômbia existem cerca de 35 clínicas de fertilidade, mas não existe regulamentação específica sobre barriga de aluguel. Nos últimos 25 anos, 16 projetos de lei foram rejeitados. Embora uma decisão do Tribunal Constitucional de 2009 tenha autorizado a barriga de aluguel “sem regulamentá-la”, ela não forneceu uma estrutura sobre “como estabelecer o contrato entre as diferentes partes, filiação, obrigações médicas e financeiras para com a mãe de aluguel”. Em 24 de fevereiro de 2023, o governo de Gustavo Petro apresentou um Projeto de Lei aos deputados. O texto estipula que as mães de aluguel devem ter entre 25 e 34 anos e já serem mães. Além disso, “os casais heterossexuais devem ter esgotado todos os meios médicos de procriação”. Dessa forma, a barriga de aluguel seria regulamentada para as pessoas com as condições para ser mãe substituta e as condições para se beneficiar dela.
Todas as pessoas solteiras, casais heterossexuais ou do mesmo sexo podem participar do processo de barriga de aluguel, desde que haja vínculo genético com o bebê. Isso é estendido aos estrangeiros que têm os mesmos direitos que os cidadãos, inclusive para a barriga de aluguel internacional. No entanto, embora a barriga de aluguel seja praticada na Colômbia, as mães de aluguel estão sujeitas a acordos de confidencialidade que as impedem de discutir o processo. Como resultado, é muito difícil obter casos de mães de aluguel que estejam dispostas a falar sobre as suas experiências ou simplesmente a testemunhar contra a prática.
No caso do México, não vale uma única legislação porque cada estado do país possui características federais, como é nos EUA. A Lei Geral de Saúde regula apenas aspectos relacionados a células, tecidos e órgãos, sem abordar especificamente a reprodução assistida (RA) e a barriga de aluguel, deixando a cada estado autonomia para estabelecer sua própria regulamentação. Em 2022, apenas dois estados autorizaram explicitamente a barriga de aluguel: Tabasco e Sinaloa. Na Índia, a barriga de aluguel é legal desde 2002. Em janeiro de 2013, o Ministro da Saúde decidiu não abrir a barriga de aluguel a casais do mesmo sexo e estrangeiros solteiros. Em 2015 passou a valer que apenas os casais indianos podem ter acesso, dentre outras regras que inclui a obrigatoriedade de a mãe de substituição ter a mesma origem (de castas) do casal patrocinador, que precisa comprovar ser estéril ou infértil e não ter filhos. Por lá foi criado o Conselho Nacional de Tecnologia de Reprodução Assistida e Barriga de Substituição, mas há muitos casos de abusos envolvendo essas mulheres. E no Brasil? Como membro da HCCH, qualquer que seja o resultado da ratificação da Convenção – se favorável ou omisso – teremos que arcar com a responsabilidade do que vier a acontecer depois. O órgão responsável atualmente é o Conselho Federal de Medicina – CFM, que proíbe a prática de barriga de aluguel contratada, permitindo apenas na forma altruísta, algo que por si só já é misógino, pois quando os pais de intenção procuram alguém para produzir a criança, eles procuram uma mulher cisgênero. Em todos os casos (altruístas ou não) as mulheres são contratadas para serem mães portadoras, ou barriga de aluguel, pelo fato de serem mulheres. Recai sobre elas o dever patriarcal de continuar a linhagem familiar, cedendo seu corpo, por caridade, a serviço de uma gravidez para um irmão, primo ou tia. Ainda hoje, é em nome da família que queremos continuar a controlar a capacidade das mulheres de dar à luz, quer proibindo-as de abortar, quer defendendo a barriga de aluguel. Para o terror da extrema direita, que deseja manter a gravidez em um lugar santificado e é contra o casamento e formação de famílias homoafetivas, casais homoafetivos brasileiros com poder aquisitivo já partem para o exterior para se recorrer à maternidade de substituição comercial (que é proibida no Brasil) e voltam com a filiação reconhecida e família devidamente estabelecida.
De acordo com a Constituição Federal, "os filhos de brasileiros nascidos no exterior são brasileiros natos, desde que registrados em repartição consular brasileira". Ou seja, o Brasil não se responsabiliza sobre as condições de nascimento fora de seu próprio território. Já é possível observar um progresso na facilitação do acesso à prática por aqui. Inclusive há nas redes sociais perfis de “influenciadoras” que criaram empresas para aconselhar quem deseja contratar uma barriga de aluguel no exterior. A corrente de extrema direita global se posiciona contra a maternidade de substituição, mas por motivos homofóbicos e conservadores, cooptando a pauta ao lado de grupos católicos que também condenam o direito ao aborto. No entanto, essa é uma causa feminista, em defesa da inviolabilidade das mulheres e contra a sua exploração reprodutiva.
Não estamos em Gilead. Ainda.
O principal argumento reacionário em torno nesse debate consiste em invocar a religião tanto para proibir o aborto “em prol da vida” (vida de quem mesmo?), como para legitimar a prática das mães de aluguel através da sua suposta menção do Antigo Testamento. Nem os advogados de Haia e nem o restante do mercado de humanos que está se criando com a maternidade de
substituição se deu conta que todos esses argumentos são falsos, baseados em histórias e referências bíblicas que dizem respeito a mulheres escravizadas, violadas pelos seus senhores.
A regulamentação não reduzirá, mas sim aumentará as violações dos direitos humanos. Qualquer regulamentação que permita que a prática da barriga de aluguel continue secretamente só aumentará o “turismo reprodutivo”, a exploração das mulheres e o tráfico de crianças nos países pobres. É possível perceber perante as informações transmitidas por Marcela Jacob, da área jurídica da CIAMS, que a aparente tentativa de reduzir a incerteza jurídica pela Conferência de Haia, só vai trazer mais incerteza, com potencial de tornar sem sentido as proibições nacionais à barriga de aluguel e servir efetivamente para legalizar tais práticas prejudiciais através das “brechas” do direito internacional privado. Não somos mercadorias. As graves violações dos direitos humanos resultantes de tal prática deveriam conduzir a uma proibição ampla e a pesadas multas sobre aqueles que participam em acordos internacionais de barriga de aluguel, incluindo agências de mediação, instituições de saúde, advogados e pessoal médico. Foi árdua a caminhada pela conquista – ainda que parcial – do direito da mulher sobre seu próprio corpo livremente. Ainda estamos em plena disputa. Ao reduzir o útero feminino a um mero objeto ou mercadoria capaz de gerar dividendos, transformamos mais uma vez a mulher em um ser sem direitos, sem dignidade e ausente de integridade. Em outras palavras, é a redução das mulheres ao estatuto de corpo disponível, e a redução da criança à condição de objeto de transação.
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Escrevo esse artigo a convite da CIAMS- Coalizão Internacional pela Abolição da Maternidade de Substituição (CIAMS), criada em 2018 por organizações feministas e de direitos humanos motivadas pelo desejo de trabalhar pela abolição dessa prática, tanto a nível nacional quanto internacional. A CIAMS reúne mais de cinquenta associações de quatorze países diferentes: França, Itália, Áustria, Espanha, Suécia, Reino Unido, Colômbia, Japão, Canadá, Ucrânia, Austrália, Romênia, Bélgica e Coreia do Sul.
ICASM International Coalition for the Abolition of Surrogate Motherhood
CIAMS Coalition Internationale pour l'Abolition de la Maternité de Substitution http://abolition-ms.org/en/home/
FONTES:
Rede pela Inviolabilidade do Corpo Feminino – Itália
HCCH - Hague Conference on Private International Law Conférence de La Haye de droit international privé - Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, ou simplesmente Conferência da Haia, é uma organização intergovernamental que administra diversas convenções internacionais, protocolos e instrumentos de soft law, com o objetivo de unificar progressivamente as normas na área do direito internacional privado. É financiada pelos países membros, Brasil incluído.
Relatório HCCH
Grécia e Tráfico de bebês
BBC – Ucrânia
Principais dúvidas sobre o tema
Relato de um homem gay contra a maternidade de substituição
Práticas mapeadas de Barriga de Aluguel no mundo
Fluxo de pais patrocinadores e mães substitutas pelo mundo
(infográfico)
Imagens do protesto em Haia:
O artigo tem a apuração e redação de Aline Souza, jornalista e Mestre em Comunicação Social – UFF/RJ, com a colaboração de Marcela Jacob, jurista na Advocacia Internacional da CIAMS, Mestranda em Estudos de gênero - Université Paris 8 e fotografias de Pauline Makoveitchoux.